O homem, o inconsciente e a espiritualidade

Gabriel Reboredo
9 min readApr 17, 2017

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Carl Jung, psiquiatra e psicoterapeuta suíço

Este texto é uma colagem de duas palestras de Carl Gustav Jung, em 1934–35, sobre o inconsciente e sua relação com a espiritualidade:

Não sou um teólogo; sou um médico e um psicólogo. Mas, como médico, tenho tido experiências com milhares de pessoas de todas as partes do mundo. Estudei cuidadosamente a psicologia delas, a qual é e deve ser o meu guia. De minha experiência com esses milhares de pacientes, convenci-me de que o problema psicológico de hoje é um problema espiritual, um problema religioso.

O homem de hoje está faminto e sedento de uma relação segura com as forças psíquicas dentro de si mesmo. Sua consciência, recuando em face das dificuldades do mundo moderno, carece de um relacionamento com condições espirituais seguras. Isso o fará neurótico, doente, assustado. A ciência disse-lhe que não existe Deus, que tudo o que existe é matéria. Isso privou a humanidade de sua floração plena, de sua sensação de bem-estar e de segurança num mundo confiável.
Na medida em que o homem moderno é compelido a voltar-se para si mesmo, tomado de dúvida e medo, ele olha para a sua própria vida psíquica, a fim de que lhe dê algo de que sua vida exterior o privou. Em virtude do atual interesse generalizado por toda a espécie de fenômenos psíquicos — um interesse como o mundo não conhecia desde a segunda metade do século XVII — não parece fora do alcance da possibilidade acreditar que estejamos no limiar de uma nova época espiritual; e que, das profundezas da própria vida psíquica do homem, nascerão novas formas espirituais.

Olhamos o mundo à nossa volta, e que vemos? A desintegração de muitas religiões. É geralmente admitido que as igrejas não estão dominando as pessoas como outrora, especialmente as pessoas educadas, que não sentem mais serem redimidas por qualquer sistema de teologia. O mesmo se vê nas antigas religiões institucionais do Oriente: o confucionismo e o budismo. Metade dos templos de Pequim estão vazios. Em nosso mundo ocidental, milhões de pessoas não vão à igreja. Só o protestantismo se desmembrou em quatrocentas seitas religiosas.

Capela Sistina, Michelangelo — http://bit.ly/2onz7X1

Contraste-se esse estado de vida e pensamento com o da Idade Média. Nesses séculos, quase toda a gente ia à missa todas as manhãs. A vida toda era vivida dentro da igreja ou à sua sombra, o que se converteu numa tremenda saída de energia psíquica. Em vez disso, temos hoje uma vida intricada e complexa, cheia de dispositivos mecânicos para a existência. Uma vida coroada de automóveis, rádios e filmes. Mas nenhuma dessas coisas é um substituto para o que perdemos. A religião dá-nos uma rica aplicação para os nossos sentimentos e emoções. Propicia significado à vida. O homem, na Idade Média, vivia num mundo significativo. Sabia que Deus tinha feito o mundo com um propósito definido; tinha-o feito a ele com um propósito definido: ganhar o céu ou o inferno. Isso fazia sentido. Hoje, o mundo em que todos nós vivemos é um manicômio. Isto é o que muita gente está sentindo. Algumas pessoas procuram-me para me dizer isso. Toda aquela energia que estava na origem do rico florescimento da vida emocional do homem durante a Idade Média, e que encontrou expressão na pintura dos grandes quadros religiosos, na escultura das grandes estátuas religiosas, na construção das grandes catedrais, apagou-se na insipidez e no tédio. Não se perdeu, porque é uma lei que a energia não pode perder-se.

Então em que se converteu? Para onde foi? A resposta é que está no inconsciente do homem. Pode-se dizer que desceu para um andar inferior.

A ativação do inconsciente é um fenômeno peculiar dos nossos dias. Durante toda a Idade Média, a psicologia das pessoas era inteiramente diferente do que é hoje; elas não tinham a percepção de qualquer coisa fora da consciência. Antigamente, os homens nem mesmo sentiam que tivessem uma psicologia, como nós agora. O inconsciente era contido e mantinha-se dormente na teologia cristã. A visão de mundo resultante era universal, absolutamente uniforme — sem espaço para a dúvida. O homem tinha começado num ponto definido, com a Criação; todos sabiam tudo a respeito disso. Mas hoje, os conteúdos arquetípicos — de que antigamente as explicações da Igreja cuidavam de um modo mais ou menos satisfatório — soltaram-se de suas projeções e estão perturbando as pessoas modernas. Perguntas sobre para onde vamos e por que são feitas de todos os lados. A energia psíquica associada a esses conteúdos está sendo mais estimulada do que nunca; não podemos permanecer alheios a isso. Camadas inteiras da psique estão vindo à luz pela primeira vez. Por isso é que temos uma tão grande exuberância de “ismos”. Grande parte dessa energia é canalizada para a ciência, por certo; mas a ciência é nova, sua tradição é recente e não satisfaz as necessidades arquetípicas. A atual situação psicológica não tem precedentes; do ponto de vista de toda a experiência prévia, ela é anormal.

O homem civilizado, em seus sonhos, revela a sua necessidade espiritual. Quando a ciência moderna desinfetou o céu, não encontrou Deus. Alguns cientistas dizem que a ressurreição de Jesus, o nascimento no ventre de uma virgem, os milagres — todas essas coisas que alimentaram o pensamento cristão ao longo das eras, são belas histórias, mas inverídicas. Mas eu digo: Não esqueçam o fato de que essas idéias que milhões de homens alimentaram de gerações em gerações são grandes e eternas verdades psicológicas.
Examinemos essa verdade, tal como um psicólogo a vê. Aqui temos a mente do homem, sem preconceitos, imaculada, incorrupta, pura, simbolizada por uma virgem. E essa mente virginal do homem pode dar nascimento ao próprio Deus. “O reino do céu está dentro de vós”. Isto é uma grande verdade psicológica. O cristianismo é um belo sistema de psicoterapia. Cura o sofrimento da alma.

Mesmo depois que a consciência dele escutou por demasiado tempo à porta da moderna ciência materialista, o homem continuou apegado a essa verdade em seu inconsciente. Os antigos símbolos são hoje bons. Ajustam-se às nossas mentes tão bem quanto se ajustavam às mentes que os conceberam. Bem no fundo do inconsciente de cada um de nós estão todas as tentativas do Grande Ancião para expressar suas experiências espirituais.

Suponha-se que lhe peço para ficar em minha casa. Digo-lhe que ela foi bem construída, que é confortável; que a nossa vida é agradável; que você terá boa comida. Poderá nadar no lago e passear no jardim. Com essas convicções em mente, você decide vir hospedar-se e desfrutar de sua estada. Mas suponha-se que, quando o convido, lhe digo: “Esta casa não é lá muito segura. Os alicerces não são de confiança. Tivemos muitos tremores de terra nesta região e creio que eles ficaram abalados. Além disso, tivemos aqui doença. Alguém morreu recentemente de tuberculose neste quarto”. Em tais condições e com essas idéias em mente, você sentiria prazer em estar nessa casa?
Aquele homem medieval de que falei tinha uma bela relação com Deus. Vivia num mundo seguro, ou que ele acreditava ser seguro. Deus olhava por todos; premiava os bons e punia os maus. Havia a igreja, onde o homem podia sempre obter perdão e graça. Tinha apenas de entrar nela para receber uma coisa e outra. Suas orações e preces eram ouvidas. Era espiritualmente amparado.

Mas o que é dito ao homem moderno? A ciência disse-lhe que não existe ninguém para cuidar dele. E, assim, ele vive cheio de medo.

Nenhum poder cósmico da terra destruiu dez milhões de homens em quatro anos. Mas a psique humana fez isso (na guerra de 1914–18).

Durante algum tempo, depois que renunciamos ao Deus medieval, tivemos o ouro por divindade. Mas, agora, também ele foi declarado incompetente. Confiamos em exércitos, mas ameaça de gases venenosos derrotou-os. As pessoas já falam sobre a próxima guerra. Num mundo assim é muito natural que todos fiquem neuróticos. Mesmo que a casa onde vivemos seja realmente segura, se você tiver a idéia de que não é, você sofrerá. Sua reação depende inteiramente do que você pensa.

O mais tremendo perigo que o homem tem que enfrentar é o poder de suas idéias. Nenhum poder cósmico da terra destruiu dez milhões de homens em quatro anos. Mas a psique humana fez isso (na guerra de 1914–18). E pode voltar a fazê-lo. Só tenho medo de uma coisa: os pensamentos de pessoas. Tenho meios de defesa contra as outras coisas.
Vivo aqui em minha casa, feliz com minha família. Mas suponhamos que ela adquire a ilusão de que eu sou um demônio em pessoa. Poderei ser feliz com ela, nesse caso? Poderei estar seguro? Todos nós estamos sujeitos a contaminações coletivas.

Voltem o olho da consciência para dentro, a fim de ver o que aí existe. Vejamos o que se pode fazer em pequena escala. Se eu plantei corretamente uma couve, então servi o mundo nesse exato lugar. Não sei que mais posso fazer.
Examinem os espíritos que falam em vocês. Tornem-se críticos. O homem moderno deve estar plenamente cônscio dos terríveis perigos que residem nos movimentos de massa. Escutem o que o inconsciente diz. Prestem atenção à voz desse Grande Ancião dentro de vocês, que viveu tanto tempo, viu e experimentou tanto. Tentem compreender a vontade de Deus: a extraordinariamente potente força da psique.

Eu digo: Devagar. Devagar. Com cada bem chega um mal correspondente, e a cada mal corresponde um bem. Não corram depressa demais ao encontro de um, a menos que estejam preparados para encontrar o outro.

Não estou preocupado a respeito do mundo. Estou preocupado a respeito das pessoas com quem vivo. O outro mundo está todo nos jornais. Minha família e meus vizinhos são a minha vida — a única vida que posso experimentar. O que fica para além é mitologia jornalística. Não é de imensa importância que eu faça uma carreira ou realize grandes coisas para mim mesmo. O que é importante e significativo para a minha vida é que viva o mais plenamente possível para cumprir a vontade divina dentro de mim.
Essa tarefa dá-me tanto que fazer que não tenho tempo para qualquer outra. Deixem-me sublinhar que, se todos vivêssemos desse modo, não precisaríamos de exércitos, nem de polícia, nem de diplomacia, bancos e políticos. Teríamos uma vida cheia de significação e não aquilo que temos hoje: loucura.

O que a natureza pede da macieira é que produza maçãs, da pereira que produza peras. A natureza quer que eu seja simplesmente homem. Mas um homem consciente do que sou e do que estou fazendo. Deus dirige-se à consciência no homem. É essa a verdade do nascimento e ressurreição de Cristo dentro de nós. Quanto maior é o número de pensadores que se apercebem disso, mais perto estamos do renascimento espiritual do mundo. Cristo, o Logos — que quer dizer a mente, a compreensão, o brilho que rasga a escuridão. Cristo foi uma nova verdade acerca do homem.

A latência é, provavelmente, a melhor condição para o inconsciente. Mas a vida saiu das igrejas e nunca mais voltará a elas. Os deuses não se reinstalarão em domicílios que abandonaram uma vez. A mesma coisa aconteceu antes, na época dos Césares romanos, quando o paganismo estava agonizante. De acordo com a lenda, o capitão de uma embarcação que passava entre duas ilhas gregas ouviu um grande som de lamentação e uma voz gritando: Pan ho megas tethneken, o Grande Pã está morto. Quando esse homem chegou a Roma solicitou uma audiência com o imperador, tão importante era a notícia. Originalmente, Pã era um espírito secundário da natureza, principalmente ocupado em apoquentar os pastores; mas, depois, quando os romanos se envolveram mais com a cultura grega, Pã foi confundido com to pan, que significa “o Todo”. Passou então a ser o Demiurgo, o anima mundi. Assim, os numerosos deuses do paganismo foram concentrados em um Deus. Então veio a mensagem, “Pã está morto”. O Grande Pã, que é Deus, está morto. Somente o homem permanece vivo. Depois, o Deus uno transformou-se em homem, e esse foi o Cristo; um homem para todos os homens. Mas agora também esse partiu, agora cada homem tem que conter Deus em si. A descida do espírito na matéria está completa.

Fonte: Sidharta Campos, escritor do blog Saindo da Matrix

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Gabriel Reboredo
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Written by Gabriel Reboredo

Carioca, tricolor, apaixonado por filmes, games, esportes, música e conhecimento.